O Resgate do Auto do Boi Bumbá em Óbidos

O Resgate do Auto do Boi Bumbá em Óbidos

* Eduardo Dias. 

A cidade de Óbidos está situada na região Oeste do Estado do Pará, e sua fundação data de 1697, (século XVII), pelo engenheiro português Manoel da Mota Siqueira. Localizada na margem esquerda do rio Amazonas, exatamente no seu desfiladeiro, onde o rio é mais estreito e, por conseguinte, mais profundo, portanto, num lugar estratégico para a defesa da região, motivo que levou a Coroa Portuguesa a construir o Forte Pauxis, para garantir a conquista e impedir o tráfico das drogas do sertão. É considerada uma cidade histórica pela sua participação em episódios da vida nacional, e pela conservação de sua imponente arquitetura oriunda do ciclo da riqueza do cacau na Amazônia.

Seus primeiros habitantes foram os índios Pauxí e Konduri, depois com a chegada do Luso colonizador, veio o elemento negro, para trabalhar nas fazendas de Cacau. Os negros fugitivos das fazendas organizaram diversos Mocambos, sendo o principal, o Mocambo do Trombetas, também denominado de Cidade das Maravilhas.

Os Padres Jesuítas da Piedade foram os primeiros a se instalar na região, na missão de catequizar os silvícolas. Sua diversidade cultural consiste do entrelaçamento dos hábitos, costumes e tradições inseridos pelos povos que a formaram (índios, brancos e negros).

São muitas as manifestações culturais vivenciadas no cenário cultural obidense, que ocorrem por todo o Município, em diferentes comunidades. Destas, será dado ênfase ao Boi Bumbá, que ocorre há mais de 150 anos.

“O meu prazer é cantar até morrer,

se eu for pensar na vida

sou capaz de enlouquecer.”

(Toada de boi do folclore obidense)

Dentre as manifestações folclóricas existentes no Município de Óbidos, o folguedo do Boi-Bumbá sempre se destacou pelo seu caráter marcante e determinante, no contexto do seu povo, onde num passado não tão distante, era comum nas noites de junho, se ouvir ao longe o rufar de um tambor, embalando os Cordões de boi-bumbá, que alegravam a vida da cidade, de maneira tão pura, que ainda hoje, vez ou outra, ainda nos deparamos mesmo que sem querer, cantarolando aquelas cantigas, que estão perpetuadas na nossa memória.

Boi Bumbá em Óbidos

Escreveu o grande pesquisador paraense Vicente Salles, na apresentação do disco Folguedos Populares do Pará, lançado pela SEDUC/1990, que notícias da brincadeira do Boi-bumbá, versão regional do Bumba-meu-boi, temos no Pará quase que simultaneamente com as que o Padre Lopes da Gama deu n‟ O Carapuceiro, Pernambuco; 1840, no Recife, 1850, em Belém e Óbidos. Na capital paraense exibia-se em 1850 o turbulento Boi Caiado e a polícia era chamada para contê-lo. A mesma turbulência em Óbidos.

De seus realizadores, mestres cantadores, o mais remoto que se tem notícia é o famoso Quirino, com seu “Estrela D‟alva”, citado na obra Terra Pauxí, 2aedição Secult/1997, do poeta e folclorista Francisco Manoel Brandão, onde encontramos referências:Guardo a certeza de um dia rever-te, abraçar-te e ouvir na sensibilidade dos novos, com entusiasmo, o Mestre Quirino cantar:

Rolo, rolo!

Rolo água no má!

Viva o boi do Amazonas

Ramalhete do Pará.

Do saudoso cronista Kleper Mota, vamos encontrar a presença do Boi Aterrador, organizado por Antônico Pé de Arpão – cantador dos mais afamados do bairro da Prainha, publicado na imprensa amapaense:

"Santo Antonio disse, São Pedro confirmou, que você seria meu compadre, que Jesus Cristo Mandou. Noites quentes sob o céu dos trópicos, leitoso de estrelas, que desceram do firmamento para a terra e vem entoar canções líricas, de braços com os namorados, atrás dos cordões de pássaros e Bois- bumbá, estrelas vestidas de chita, com jasmins nos cabelos sedosos, cheirando a patichouli, a terra molhada, dançando a cadência dos batuques, violões e cavaquinhos... esse passado bom e gostoso como o aluá, apimentado como a Tacacá da Tia Esperança, acre como o Cará com melado, tomado na rua Cearense, vindo do ”centro”, do Rio Branco...Mães do milho assado, das fogueiras e bombas, das biscas e busca-pés, regalo da garotada dos subúrbios, ao clarão das fogueiras...cujo o calor as faces ficam rosadas plenas da alegria e do prazer que a malária não consumiu.

Lá aparece o Cordão. Há um movimento geral: os noivos esquecem as pequenas, as mães os filhos, as tias o reumatismo. Todos querem ver e ouvir os restos das canções de um folclore quase esquecido no espaço e no tempo. O „ATERRADOR”, boi tradicional de que é dono Antonico pé de Arpão, atrai todos os olhares:

“Ai boa noite seu Félix Rego

Ai como vai como passou

Eu vou uns instantinho lá embaixo

Depois eu trago o Aterrado-õ.”

De fato, dos cantadores e “Amo do Boi” que mais se destacou, foi Antonio Fernandes, o seu Antonico Pé de Arpão, que depois emprestou seu nome para designar rua na cidade. Deste cantador, vamos encontrar o registro fabuloso na escrita do grande escritor Ildefonso Guimarães, no seu livro,

Senda Bruta, obra premiada pela Academia de Letras Paraense, mais precisamente no conto “Caminhos do Vento”, onde descreve com maestria, os lampejos da pelejada do boi nas noites vadias obidenses:

"Na curva da rua os primeiros balizas já vêm surgindo. Chico da Arama puxando a cadência; gaforinha emplastrada, luzindo de brilhantina. Da porta do Cerdreiro saíram para acender a fogueira: tudo quanto é paneiro, balaio velho, cesta encostada, vai pegando fogo, ardendo nuns breves louvores a São Marçal – Fumaça e vento a se misturarem, e o mundéu de fagulhas salpicando a noite de lantejoulas.

Ò ferro! Ò aço!

Eu percuro mas não acho!

Ò ferro! Ò aço!

Eu percuro mas não acho!

Ao centro, o vulto comprido do “Aterrador”. Só ele parece o mesmo dos velhos tempos: malhado de preto, barra toda branca com estrelas douradas; uma lindeza de “boi”. Vem sendo tangido pelos “vaqueiros”, guarnecidos de perto pelos “rapazes”:

Guarnece o boi, rapaziada!

Guarnece o boi, rapaziada!

No rom per da madrugada.

 

No rom per.

Quem fica, fica,

quem já vai sou eu!

Moça, não chore,

Adeus, Adeus!

 

Quem fica, fica, quem já vai sou eu!

Moça, não chore,

Adeus, Adeus!

Moça, não chore...

 

As vozes se vão apagando no fim da rua. A luz da fogueira, quase extinta, os derradeiros acompanhantes se desmancharam; viraram sombras, fumo cinzento, vultos de assombração de esvaindo na noite.

No ar as derradeiras fagulhas vão se extinguindo; desgovernadas, rodopiando, sumindo na ventania que sopra da Serra."

Entre os cantadores e amos importantes do folguedo do boi-bumbá obidense, temos o seu Martinho, que fez história em Belém no início do século XX, segundo o pesquisador Vicente Sales, um dos mais importantes levantadores de toadas no Pará. Outro é Floriano, (conhecido por Flori), que já foi motivo de inspiração do compositor Wander Andrade na bela canção

Dançarino do Vento; outro é o velho conhecido "Canhão", o pintor Bilú, Antônio Fernandes Filho, entre outros.

Nos últimos anos, a Fundação Carnavalesca Mário Prata se dedicou na montagem do Boi Flor do Campo, onde se apresentou no mês de julho, dentro das festividades da Padroeira Santana.

O resgate do Boi Bumbá de Óbidos tem a chancela da Ufopa, no acompanhamento do Prof. Dr. Itamar Paulino, foi aprovado através de Emenda Parlamentar do ex-Deputado Edmilson Rodrigues (Psol), projeto realizado por Eduardo Dias, ex secretário municipal de cultura.

* Eduardo Dias é advogado, agitador cultural, poeta e compositor, escreve a coluna Arte & Cultura no Jornal de Santarém.

Comentários  

0 #1 Stela Maria Santos B 11-07-2022 11:50
Muito bem, apreciei muito esse relato do Boi Bumbá em Óbidos. Meu pai, Francisco Manoel Brandão, citado no seu artigo, era ele mesmo a memória viva desse folclore, de sua amada Óbidos. Deixou outros poemas que remetem à sua infância obidense, que em breve deverão ser publicados sob o título "Meu Baú de Emoções".
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